quarta-feira, 21 de fevereiro de 2024

"O que eu tô fazendo aqui?" (A Virtude do Compromisso)

     É sua primeira vez guiando. Você só subiu 2 metros na parede desde a última costura. Olha pra cima e não vê um caminho óbvio. Começa a se perguntar se deve arriscar subir mais 2 metros até a próxima costura e arriscar cair, ou se deve desescalar até a segurança da última costura. A ideia de uma queda, que fica maior à medida que você continua subindo (5, 6, 8 metros?) rumo à costura faz os 2 metros parecerem 20. Te paralisa. Enquanto você fica parado os músculos dos braços começam a doer. Você olha pra baixo pra se certificar de que pode confiar nos pés. A ideia de uma caibra ou tremor por medo te faz antecipar o medo de uma queda inadvertida que você levou se repetir...


    O pensamento vai longe, pra 2 meses atrás. Agulhinha da Gávea, via Zaib. Pavel guiando, Lia passou na frente porque além de ter anoitecido começou a chover. "Bora logo, senão a gente vai ter que dormir aqui!"... Quase no final dos 170 metros. Pé escorregando, ventania, relâmpago (lembra que semana passada na Pedra da Gávea um guia morreu com raio), você só não chorou porque tava aterrorizado e sabia que não ia ajudar em nada na situação. Travessia, tudo molhado, você perdeu os 2 pés ao mesmo tempo. Caiu pendulando e gritando no escuro, sem saber se ia bater em cacto, rocha, arbusto, bromélia ou árvore. "Eu nem me despedi da minha mãe". Surra de Agulhinha da Gávea (vídeo)

    O flashback termina mas a sensação de medo continua. Você respira pra evitar do medo virar pavor. Mas os seus músculos já estão tomados pela falta de autoconfiança. Sua mente não sabe o que fazer. Seus braços já estão cansados por ter gasto mais de 2 minutos pra clipar cada uma das costuras abaixo, ter feito "back clipping" e ter tido que consertar uma delas. Primeira vez guiando (vídeo)

    "Bora Lucas, moleza pra você! Tá no quintal de casa, em Copa!" - Pavel na seg te tira do transe. Nicholas e Felipe tão lá embaixo também. Do seu lado esquerdo estão guiando a Scorpion, 7a que é sua meta pessoal. Você percebe que os lances acima são óbvios. Claro, você já subiu a "Lions/Gardênia, estrela que não brilha" de top rope no dia 31, logo antes de vocês terem passado o ano novo na Chacrinha, vendo os fogos da praia de Copacabana.


    É só pagar uma barra, depois outra, depois um tapa no balcão logo acima. Você posiciona os pés na oposição e se puxa, ganha altura, a mão bate na parte abaulada da agarra e você cai. Poucos metros. Quando se dá conta que caiu já parou. Está tudo bem. Você não está machucado. Por que você estava com medo mesmo?

    Existe uma virtude em quebrar o limiar de inércia e se comprometer com a possibilidade do fracasso. Tanto na escalada, quanto no parkour ("quebrar o pulo"), quanto na vida. "Aceitar a arte de morrer", como diriam George Harrison e Bruce Lee. Não existe nada especial em guiar em uma escalada, assim como não existe nada especial em viver os desafios do dia-a-dia. A única coisa que as práticas físicas que envolvem comprometimento e risco deixam claro é que são uma metáfora da vida em sim.

    Então da próxima vez que você pensar "O que eu tô fazendo aqui?" redirecione para "Eu estou aqui porque sei aonde quero chegar, e sei o que preciso fazer pra isso." Não apenar pense, acredite. Não apenar acredite, realize. A recompensar é escapar do sofrimento gerado pela inércia, e não o sucesso.


Att,

Lucas